OpiniãoA infância que o Estado não vê!

A infância que o Estado não vê!

Relacionados

Quando o Espaço se Fecha para Quem Pensa Livremente

Nos bastidores da participação cívica e pública, existe uma linha ténue entre a pertença e o afastamento. Durante anos, dei o melhor de mim...

Paços de Ferreira e Lousada: Duas Terras, Dois Caminhos

No coração do Vale do Sousa, há duas terras vizinhas que, apesar de partilharem a mesma paisagem, seguem rumos muito diferentes: Paços de Ferreira...

Conheça os Candidatos Autárquicos – Quem Quer Representá-lo?

As eleições aproximam-se e, com elas, chega o momento de tomarmos decisões que podem influenciar o nosso futuro. Mas, afinal, quem são as pessoas...

Durante anos, as casas de acolhimento geridas por congregações religiosas — como a Casa das Irmãs da Caridade, em Setúbal, da ordem da Madre Teresa de Calcutá — desempenharam um papel decisivo no cuidado de crianças em situação de abandono, negligência ou risco. Conheço de perto essa realidade. Fui voluntário nessa casa, participei como monitor em colónias de férias e acompanhei muitas crianças vindas do Hospital Dona Estefânia, algumas delas deixadas lá sem ninguém. O que testemunhei foi mais do que assistência social: foi humanidade, presença, cuidado e amor incondicional.

Hoje, essas casas são cada vez mais raras. Muitas fecharam ou foram retiradas das mãos das religiosas, como sucedeu na casa onde trabalhei, para serem entregues à gestão da Segurança Social. O resultado? Um sistema burocratizado, sobrecarregado, incapaz de garantir às crianças a estabilidade emocional e os vínculos afetivos que são cruciais ao seu desenvolvimento.

Na semana passada, Portugal voltou a confrontar-se com esta realidade. Segundo reportagens de 14 de maio, há dezenas de crianças institucionalizadas há anos, sem qualquer projeto de vida familiar, e outras tantas presas num limbo legal à espera de adoção — num país onde o processo continua a ser lento, opaco e demasiado exigente para quem quer acolher e amar.

É urgente dizê-lo com todas as letras: o sistema de adoção em Portugal está falido. As famílias que pretendem adotar enfrentam um percurso longo, desgastante e muitas vezes desmotivador. Exigências técnicas e prazos inflexíveis acabam por afastar potenciais adotantes que seriam capazes de oferecer um lar seguro e afetivo. Pior: a criança deixa de estar no centro do processo — é a máquina administrativa que assume o protagonismo.

Em contraste, a experiência das Irmãs da Caridade mostrava-nos que o cuidado com estas crianças não pode ser uma função puramente técnica. Elas eram mães, educadoras, enfermeiras, psicólogas — tudo num só rosto. Sabiam os nomes, os medos, as histórias de cada menino e menina. Esse vínculo não se constrói em turnos de oito horas. Constrói-se com vocação e continuidade, coisas que a estrutura estatal, por mais bem-intencionada que seja, não tem conseguido garantir.

Recentemente, a aprovação da Lei n.º 37/2025, que permite que famílias de acolhimento sejam formadas por familiares ou por candidatos à adoção, abre uma janela de esperança. Mas uma lei sem meios não é solução. Sem reforço da formação, do acompanhamento e do financiamento, arriscamo-nos a transformar essa boa intenção em mais um capítulo de promessas não cumpridas.

Portugal precisa, com urgência, de desburocratizar e humanizar o processo de adoção. Precisa de confiar mais nas famílias e menos nos papéis. Precisa de aceitar a ajuda da sociedade civil, das ordens religiosas e das associações que, durante décadas, fizeram mais com menos — e com um compromisso ético que não se compra com salários nem se regula por despacho.

A infância institucionalizada não pode continuar a ser a infância invisível. Quando uma criança cresce anos numa casa de acolhimento sem saber o que é ter uma família, falhámos todos — mas falhou sobretudo o Estado.

É tempo de olhar com seriedade para esta realidade. Porque a infância que o Estado não vê está mesmo à nossa frente. Só não a vê quem não quer.

- Publicidade -
- Publicidade -spot_img
- Publicidade -spot_img
- Publicidade -spot_img

Últimos Artigos

- Publicidade -