O Governo apresentou, na passada semana, um conjunto de medidas destinado a “responder de forma completa a todas as dimensões do problema da habitação” (sic). De entre o grande número de medidas que se encontra em consulta pública, o denominado arrendamento coercivo das habitações consideradas devolutas é, de longe, a que gerou e gera maior problemática, tendo-se gastado inúmeras horas de televisão e páginas de jornal com esta questão, o que acarretou o acantonamento do debate e, consequentemente, o seu empobrecimento.
Não nego que a questão seja da maior importância. Contudo, muito mais há para dizer sobre este tema e sobre as medidas apresentadas no seu conjunto, de entre as algumas merecem especial e positiva evidência.
Permitam-me, no entanto, fazer um ponto prévio. O programa de medidas apresentado é, em si mesmo, um acto de contrição do Estado. Foi precisamente o próprio Estado que muito contribuiu para que o problema da habitação tomasse estas proporções. Basta ver os efeitos nefastos provocados por legislação de arrendamento absolutamente arcaica, motivada apenas por factores de ortodoxia e doutrina política decorrentes do período revolucionário do pós 1974, cujas proporções e consequências ainda hoje, passados 50 anos, se sentem.
Dito isto, a intenção do Governo de simplificar procedimentos administrativos em questões urbanísticas merece o mais alargado elogio. A descomplicação que o executivo pretende implementar implicará que deixe de ser necessária a apreciação prévia dos projectos de construção por parte das entidade licenciadoras (nomeadamente da Câmaras Municipais). Bastará, para o efeito, uma declaração de conformidade dos projectistas, funcionando o cumprimento da Lei numa vertente fiscalizadora a jusante da execução da obra e não de uma avaliação como condição prévia para o início da mesma.
O princípio da desburocratização vai-se reflectir, ainda, quando os proprietários pretendam converter imóveis destinados a comércio/serviços em imóveis para habitação. Nestes casos, deixará de ser necessária toda a burocracia relativa à obtenção da licença de habitabilidade, sendo a conversão feita de forma automática.
Há que dizer que tais medidas, a concretizarem-se, serão seguramente bem-vindas. A ineficiência do Estado (em sentido lato) e a demora dos procedimentos administrativos é um entrave ao dinamismo que se pretende que o mercado habitacional possua, pois sem esse vitalidade, celeridade e redução de custos, seguramente não se resolve o problema.
Pegando precisamente na questão financeira, o Governo usou (e bem) a fiscalidade como arma para atacar o problema. Realça-se, nesta parte, a intenção do Estado adquirir imóveis a privados, isentando-os do pagamento de quaisquer mais-valias pela respectiva alienação e a redução das taxas de IRS que incidem sobre os rendimentos provenientes de rendas, podendo essas taxas baixarem até aos 10% para contratos de arrendamento cuja duração seja superior a 20 anos. Tudo factores que poderão ter um efeito bastante positivo na segurança jurídica dos contratos de arrendamento (por via da sua longevidade) e aumentar o número de casas disponíveis no mercado.
No entanto, as medidas acima referidas devem ser recebidas com a maior das reservas. Isto porque, o seu sucesso dependerá da forma como forem concreta e futuramente, regulamentadas.
Por exemplo, um regime que isente de mais-valias a alienação de imóveis ao Estado mas que, ao mesmo tempo, limite desproporcionalmente (isto é, relativamente aos preços praticados pelo mercado) o valor concreto pela qual os imóveis poderão ser alienados pelos privados acabará por, inevitavelmente, torná-lo inconsequente e inócuo. Mais: para que a medida em causa possa ter um efeito real no mercado imobiliário, é necessário que as compras de imóveis pelo Estado sejam feitas em número e escala condizente com tal objectivo, o que se afigura difícil.
Por outra via, sou assombrado por sérias reservas quanto à forma como será administrado o parque imobiliário que o Estado pretende adquirir e, bem assim, como será feita a gestão do arrendamento que dele se venha a fazer.
A avaliar pelo elemento histórico, está longe ser vista como positiva a administração que o Estado faz dos próprios imóveis ou, até, das medidas que tentou implementar no campo da habitação.
Basta ver os inúmeros os exemplos de edifícios do Estado que se encontram em estado de ruína, a complexidade, excessiva limitação e pouca publicidade do programa “Porta 65” e, bem assim, a burlesca circunstância do inventário de imóveis do Estado que se encontra, há 20 anos, por concluir.
Tão nuclear como idealizar medidas que se querem estruturais, é necessário que as mesmas tenham uma regulamentação exemplar e uma aplicação eficaz prática. O passado português está cheio de exemplos de boas intenções políticas que acabaram fulminadas por regulamentações legislativas inaptas e por uma administração inoperante.