Aproveitando as celebrações de mais um aniversário da Revolução dos Cravos vamos falar de liberdade.
A liberdade é um conceito amplo, dicotómico, nem sempre consensual. O valor intrínseco da liberdade é diferente do valor da liberdade como mero instrumento político ou de propaganda. Não devemos estranhar, por isso, quando duas forças antagónicas se perfilam por defender a sua liberdade. Não é, certamente, a mesma liberdade, tal como defende Mario Vargas Llosa em “O apelo da tribo”, deambulando pelos pensamentos de Isaiah Berlin.
Uma revela-se no seu lado mais individual e moderno, associada a um nível civilizacional mais elevado. Assenta na “criatividade humana, no desenvolvimento intelectual e artístico”, na autodeterminação do individuo, no respeito pela sua autonomia, personalidade individual, motivações, preferências e objetivos.
Pelo contrário, a outra noção de liberdade defende a homogeneidade da comunidade e a definição de uma meta única para a sociedade, considerando que os indivíduos são iguais e têm vontades e necessidades semelhantes. É desprovida de ambição e criatividade. É uma visão centralizadora e autoritária, que pretende formatar uma sociedade a um modelo e a uma ideologia. Se por um lado foi este conceito de liberdade que nos trouxe a consciência social e o alerta para as desigualdades, é também este conceito de liberdade que está por detrás das atrocidades cometidas por regimes totalitários que querem impor, à força, a sua liberdade baseada em crenças finalistas e igualitárias.
O pós-25 de abril de 1974 é um exemplo claro das duas visões de liberdade. Um baseado na democracia liberal, que por fim se consolidou, e outro baseado na liberdade amarrada à ideologia igualitária e de pensamento único que, lentamente, vai sucumbindo.
Mas a democracia encontra-se em decadência. A maturidade política da população é inversamente proporcional à qualidade dos protagonistas políticos, que se afastam cada vez mais das pessoas e da realidade, numa altivez e sobranceria que mina ano após ano a qualidade da democracia. Um país que não soube adaptar-se, que se distanciou da política por cansaço e desilusão, que se tornou num regime partido-familiar manipulador, centralizador e com tiques autoritários.
Somos livres, de tomar decisões
Decorrente do conceito mais autónomo da liberdade, está o princípio da liberdade de escolha, da tomada de decisão, que se baseia na equidade e na moralidade, num sinal de crescimento de uma sociedade organizada e aberta. É um sinal de confiança no individuo e na sociedade, nas suas próprias capacidades para tomar decisões.
Poder escolher a escola, ter acesso a toda a rede de saúde, abraçar a mobilidade geográfica, optar por diferentes alternativas em setores como a energia, a segurança social ou a justiça, a liberdade política, religiosa ou económica. Não podemos continuar presos a indicadores só porque estes funcionaram no passado. A vida é imprevisível no futuro, não no passado. A liberdade de escolha é um direito básico do cidadão do futuro, da evolução da democracia.
O individuo unido jamais será vencido
Um dos argumentos usado contra a liberdade de escolha é de que algumas pessoas, principalmente nas camadas mais pobres e menos instruídas da população, não terão interesse ou condições para exercer essa escolha. Para que servirá a liberdade de escolha na educação, tal como sustenta Manuel Carvalho no seu artigo de 12 de janeiro de 2022, “a perigosa ilusão da liberdade de escolha”, se os pais não estão todos numa posição simétrica para deliberar sobre a educação dos seus filhos?” Mas é aqui que a liberdade de escolha é mais importante: ter em conta que os indivíduos são diferentes e têm diferentes necessidades. Não deixar ninguém para trás. O papel do estado e da sociedade é fundamental na diminuição do atrito e diminuir a distância entre os indivíduos, na criação de uma base comum que permita a pessoas de qualquer origem poderem ter um futuro melhor e com mais qualidade de vida. O papel é o de criar mecanismos que protejam e elevem as pessoas, mas que não as impeçam de avançar e tomar decisões.
A liberdade de escolha nos municípios
Este trabalho deve começar desde logo nos municípios. São eles que podem dar mais autonomia aos cidadãos, mais crédito às suas opções de vida no imediato. O setor empresarial dos municípios é um dos principais fatores de corrupção e decadência de um sistema livre e democrático. É conhecido o conceito nefasto e degradante do “jobs for the boys”, a total ausência do mérito, da criatividade, da inovação.
Se os municípios querem desenvolver atividades produtivas porque não proporcionar essa oportunidade aos cidadãos que se candidatem? É possível estabelecer regras, regulamentos, códigos de conduta, princípios éticos, estruturas que permitam devolver a atividade económica e livre concorrência a quem esteja interessado. O município não tem que se substituir ao munícipe, tem de criar as condições para que este se desenvolva, crie riqueza e participe ativamente. Com esta atitude, o município, e todas as funções do estado, poderá ser mais descentralizado, mais próximo das pessoas e mais eficiente.
Polarizar e diabolizar a sociedade numa luta público e privado é confrangedora. Apenas divide. Coloca-nos em trincheiras onde ambos têm razão e nenhum sai vencedor. O que interessa ao doente de Arreigada ou de Lamoso se vai ao Hospital Privado de Alfena ou ao Hospital Padre Américo em Penafiel? A vida em sociedade e no respeito pela individualidade, pela sua liberdade, não pode ser reduzida a uma luta ideológica e partidária.
Os municípios não são o centro do poder, mas sim o princípio da descentralização do poder. A escolha é sobre colocar o Estado ao serviço das pessoas ou as pessoas cada vez mais ao serviço do Estado. São as pessoas que devem decidir o que o Estado pode ou não fazer. Não o contrário.
O Futuro do liberalismo
Em dezembro de 2020, ao ler um artigo de Martin Wolf no FT – The fading light of liberal democracy – descobri um ensaio muito interessante – The future of liberalismo, de Timothy Garton Ash, uma espécie de renovação liberal para o futuro da democracia.
A ideia base deste artigo, e do ensaio referido, é de que estamos a atravessar uma “recessão democrática”, que a educação se transformou numa “meritocracia hereditária” e em termos económicos estamos entregues ao plutocrata “Davos man”. Os desafios sociais, políticos e ambientais devem ser bem ponderados num capitalismo que se quer dinâmico e inovador, mas consciente, social e integrador.
Perante o cenário de, mais de um século depois, entre países com mais de 1 milhão de habitantes, termos agora menos democracias do que regimes não democráticos devia, de imediato, fazer-nos refletir. O futuro do liberalismo é fundamental para a defesa dos direitos humanos, do estado de direito e do poder limitado do governo, bem como da liberdade de expressão e de opinião.
A última frase do referido ensaio é paradigmática: “A liberdade é como a saúde – valorizamo-la mais quando a perdemos. No entanto, o melhor caminho a seguir, tanto para sociedades livres quanto para indivíduos, é manter-se saudável”. Por isso, concluo eu, não negligenciemos a liberdade nem a saúde.
Para terminar, deixo uma frase de Sérgio Godinho, “‘Liberdade’ é de todas as palavras e conceitos que uso na minha vida, e por arrasto nas canções, a que mais acarinho e que mais defendo, aquela que dá ao norte a sua bússola”.
Vítor Ribeiro