João Gomes tem 8 anos, autismo leve e hiperatividade. Durante o ensino online, foi a mãe quem o ajudou a realizar as tarefas diárias, bem como o acompanhava durante e após as aulas. Charlene Sousa refere ter de acompanhar sempre o filho durante as aulas online, caso contrário, João não é capaz de assimilar a aprendizagem sozinho. De acordo com as palavras da mãe “as aulas remotas, para ele, é ele estar ali, mas parece que não está, não chama muito e é mais complicado”.
Helena Brito realizou várias lives no Facebook intituladas de “Crianças com necessidades especiais na Pandemia” e procurou transmitir informações úteis, através de profissionais da área, de forma a ajudar as famílias. A Associação Pais 21, representada por Teresa Ferreira, explica que “inclusão não é o mesmo que equidade” e que as crianças com necessidades especiais precisam que a justiça social seja para cada um e não igual para todos.
O EMISSOR procurou expor a opinião destes testemunhos, de forma a apresentar as dificuldades atuais das crianças com necessidades especiais e de que formas é necessário ultrapassar o preconceito, aceitar a diferença e promover a igualdade de direitos, de acordo com as necessidades de cada um.
O testemunho de uma mãe
Quando foi decretado o confinamento, em março de 2020, João Gomes foi um dos alunos com necessidades especiais que teve de ficar em casa, junto da mãe, Charlene Sousa, que recorda hoje como é que a escola lidou com os alunos com estas características.
“O que foi feito foi uma aula semanal para o meu filho com educação especial”, conta Charlene, acrescentando que não recebeu “nenhuma orientação sobre como deveria trabalhar com ele ou trabalhos específicos” direcionados à aprendizagem do filho.
Charlene recorda que o material não dava para ser adaptado uma vez que as aulas eram virtuais, referindo que o João tinha apenas “dois dias na semana em que a professora tirava, não só para o João como para todas aquelas crianças que têm dificuldades de leitura, uma hora a mais”, de forma a ajudar.
No sentido de ajudar o filho, Charlene descreve não existirem técnicas, mas sim material adaptado de forma a ajudar crianças com autismo a compreender e assimilar melhor a matéria. Nesse sentido, refere que as professoras não utilizam o melhor material para ajudar João, que tem uma maior dificuldade em assimilar matéria, principalmente aquela que não gosta.
“Por exemplo, o meu filho a matemática é muito bom, mas português tem que saber aquelas regras todas e eu não tenho técnicas para aplicar, nem fui orientada em casa”, descrevendo ainda que, na altura, enviou um email à professora para que esta enviasse materiais adaptados para que pudesse trabalhar com o filho, e a mesma “enviou apenas um vídeo que eu precisava mostrar que os verbos eram aquilo e depois, por mim, fui pesquisando e fui ajudando da forma que consegui”.
Além de autismo, João Gomes tem hiperatividade, o que dificulta o estar com atenção durante as aulas e, de acordo com a mãe, “mesmo estando medicado, ele não tem aquela atenção que os outros miúdos têm”, recordando que João estava uma hora e, quando passava essa hora, tinha necessidade de descansar para se reorganizar.
“É um stress constante”
Charlene Sousa conta que, para lidar com o filho sem um professor e, ao mesmo tempo, lidar com o trabalho em casa, torna-se num “stress constante”, que a leva a refletir no próprio relacionamento, “seja conjugal, seja de mãe e filho, porque nos espaços, o que nós mostramos para eles é que nos sentimos impotentes, não temos como fazer, não temos como ajudar de alguma maneira que devia de ser”, conta.
Por outro lado, quando Charlene explica fazer da forma que sabe, confessa sentir não ser suficiente. Apesar deste sentimento, explica que, nesta situação “há várias pessoas a passar por isso, só que geralmente quem sabe mesmo ajudar e transmitir os conteúdos é só quem tem formação para isso”.
“Eu tive que me disponibilizar o dia inteiro porque pela manhã tinha aula e, após terminar, tinha que fazer os trabalhos. Depois, às 14h, tinha que voltar e novamente tinha que fazer os trabalhos quando a aula terminava”, explica e acredita na necessidade de ter de dar uma atenção constante a João, bem como ter paciência.
Charlene conta que, lidar com uma criança com necessidades especiais é difícil, “principalmente quando no mundo que a gente vive hoje em que as pessoas são extremamente egoístas e que não educam os filhos para conviver com crianças desta natureza”, explica.
Refere que, relativamente aos diretos, é necessário que os pais estejam sempre “em cima para que sejam válidos” e dá o exemplo do material adaptado que, muitas das vezes, não era enviado para o João. “Ele tem autismo leve, é quase impercetível, a não ser ao ver comportamentos específicos. Ele não tem o que outros meninos têm visível do autismo e esta condição acaba por ser deixada de lado e acharem que ele pode acompanhar os outros”, contando que, só após ter “batido o pé” é que no segundo ano lhe começaram a ser enviados materiais adaptados.
O que falta fazer no ensino
“O presencial acaba por ser mais eficaz pelo contacto”, é a opinião da mãe de João relativamente à condição do filho, explicando que “a parte do convívio social é muito importante porque eles fazem, muitas vezes, pela imitação”. Charlene chega mesmo a dar o exemplo de “como eles vêm os colegas a fazer, eles também querem, e isso para eles é benéfico”, acrescentando que “como vêm o amiguinho a ler, então eles esforçam-se mais para que eles consigam ler, pela competitividade, porque eles gostam de mostrar que sabem”.
No que diz respeito ao ensino online, Charlene reitera ser menos eficaz, uma vez que não existe tanta concentração, e as perguntas, de acordo com a própria, são realizadas de forma individual, exemplificando que “lá (ensino presencial) eles podem levantar a mão e dizer que estão disponíveis, aqui é a professora que pergunta direcionando-se ao aluno”.
Na opinião de Charlene Sousa, “as escolas ainda precisam de se adaptar muito, porque não estão preparadas para crianças desta natureza e outras. Há a inclusão no papel, mas muitas escolas não estão preparadas, e o pessoal também não”, conta. A mãe de João acredita que as pessoas “têm que olhar para estas crianças com um olhar diferente, de sensibilidade e de humanidade, é o que falta”.
“As pessoas olham para elas como apenas mais um, e não é só mais um. Eles vieram para somar na qualidade da escola. É exatamente através deles que a escola se põe à prova, com este tipo de crianças, que não são fáceis”
A importância da informação
Helena Brito é facilitadora de Parentalidade Consciente e, recentemente, realizou várias “lives” no Facebook, intituladas de “Crianças com necessidades especiais na Pandemia”, com o intuito de ajudar os pais, com informações importantes, proferidas por especialistas de diferentes áreas, nomeadamente ao nível da Terapia Ocupacional, Psicologia, Fonoaudiologia, Terapia da fala e Psicopedagogia.
A ideia surgiu, de acordo com Helena, durante a uma conversa com uma amiga, mãe de uma criança com autismo e, a partir daí, a facilitadora de Parentalidade Consciente, procurou ajudar as famílias, contribuindo com informações úteis para as famílias, dando visibilidade às crianças com necessidades especiais, bem como as famílias e profissionais.
Ao longo de vários dias, Helena Brito refere ter aprendido muito com todas as informações que adquiriu e acredita ter ajudado várias famílias neste mesmo sentido. Entende que a dificuldade principal das crianças com necessidades especiais é “lidar com a alteração brusca de rotinas”.
“As crianças com necessidades educativas especiais constituem um grupo vulnerável”, explica e adianta que “necessitam de mais apoio e acompanhamento em termos de aprendizagem e as terapias regulares presenciais em muito beneficiaram a sua evolução positiva”.
Neste sentido, sublinha que, para estas crianças, “a relação de confiança que se estabelece com um adulto em abordagens de intervenção presenciais é incomparavelmente mais rica do que quando estabelecida à distância e de forma digital”.
A situação atual, teve um maior impacto, de acordo com a facilitadora de Parentalidade Consciente, um “maior impacto ao nível da gestão emocional por parte destas crianças, que se encontram desreguladas, com dificuldades de conexão e sem ferramentas para lidarem de forma mais positiva com a situação”.
Foi durante o mês de fevereiro do presente ano que Helena Brito realizou as suas “lives” no Facebook, com especialistas de diferentes nacionalidades e com realidades diferentes de Portugal, contudo, todos com uma intenção em comum “dar a melhor resposta às necessidades das crianças e das famílias”.
Durante o processo, Helena Brito conta ter tomado conhecimento que “durante os períodos de confinamento, as terapeutas têm que delegar nos adultos da família, por norma a mãe, a responsabilidade de fazerem as práticas terapêuticas com os filhos adequadas à realidade em que nos encontramos”.
“Se ‘calçarmos’ por uns minutos os sapatos destas mães ou educadores, conseguimos perceber que o processo é bastante exigente e desgastante, física e psicologicamente. Muitas destas mães não têm suporte psicológico e muitas vezes o único acolhimento que recebiam para as suas próprias angústias era o do(a) terapeuta do filho(a), do qual também se encontram privadas.”
“Sabemos pouco sobre as necessidades especiais”
Após a realização do projeto, Helena Brito conclui que, atualmente, “sabemos pouco sobre necessidades especiais e que pode ser muito desafiante para as famílias e para os técnicos lidar com a impotência que sentem nesta fase, por não conseguirem cuidar de quem mais precisa”, explica.
Por outro lado, a facilitadora em Parentalidade Consciente refere que “as pessoas que se envolvem nestes processos colocam o foco na solução e não no problema, o que é de louvar”. Apesar de tudo, Helena Brito também concluiu que “o preconceito ainda existe e que na área da inclusão ainda há muito trabalho a ser feito”, referindo ainda que, muitas das famílias, “não vêm o defeito, a diferença, a necessidade, vê o Ser que ocupa um espaço enorme no próprio coração”.
“É mais fácil a criança ser retirada da sala de aula”
“Infelizmente ainda existem muitas limitações”, acredita a Teresa Duarte Ferreira, Terapeuta Ocupacional e membro da direção da Associação Pais 21. A terapeuta refere existir uma boa legislação, no entanto, a aplicação da mesma “fica ao critério e vontade dos professores e, infelizmente, o modo como estas crianças são vistas e tratadas fica muito aquém do desejado”, explica, referindo às crianças com Síndrome de Down/Trissomia 21.
“Inclusão não é o mesmo que equidade”, explica Teresa Ferreira e acrescenta que “a justiça social tem de ser para cada um e não igual para todos e, infelizmente, isto dá trabalho. É mais fácil a criança ser retirada da sala de aula e ser colocada num centro de atividades ocupacionais (CAO)”.
Na opinião da terapeuta, as famílias não são ouvidas e, em muitas casos, cria-se uma “enorme cisão casa-escola, e infelizmente os mecanismos de defesa de implementação dos direitos são muito deficientes”.
Teresa Ferreira refere que não existe uma igualdade de oportunidades, descrevendo que “existe em teoria igualdade de direitos, temos várias convenções internacionais que assim o atesta, mas estes não são implementados, quanto mais igualdade de oportunidades”, explica.
A terapeuta adianta que a sociedade está formatada para aquilo que conhece, e o que sabe que “funciona” e, por isso, reconhece que “a maioria das pessoas tem uma enorme dificuldade de sair da sua zona de conforto. Curioso porque genuinamente não sabem o que fazer com uma pessoa diferentes, instala-se um desconforto”. Teresa Ferreira explica que “esse desconforto e essa ignorância impede que as oportunidades surjam, seja a nível escolar, de emprego. Tememos o que não conhecemos, e ainda existe um enorme bicho papão com a deficiência”, conclui.