EMISSOR: Quando é que surgiu este amor pelo teatro e pelo mundo da interpretação? Existe uma história por de trás desta escolha?
Rita Pinheiro (RP): Sinto-me numa das minhas entrevistas imaginárias. Como muitas pessoas, este meu amor vem de pequenina. Eu estava constantemente a brincar à volta da representação, da música e da dança. No fundo, criar uma performance e comunicar era o que me divertia. As minhas brincadeiras passavam por uma tentativa de imitar as actrizes das novelas, ou então cantava com um objeto a fazer de microfone e depois era entrevistada. Imaginava-me muitas vezes numa espécie de programas ou conversas pós-espetáculos, nas quais era entrevistada. Imaginava a entrevistadora e o público. As perguntas eram feitas mentalmente e respondia sempre com imenso entusiasmo, falava do meu passado, de como tinha começado e dos projetos futuros, agradecia sempre o convite e a presença dos fãs. Passava horas nisto. Adorava fazer os meus shows. Apesar de brincar muito sozinha, criatividade e imaginação não me faltava e sentia-me verdadeiramente a comunicar. O meu sofá era o meu público imaginário e era muito divertido. E pensava sempre que um dia iria ser actriz, ia pisar grandes palcos e ia fazer cinema.
Depois fui crescendo, a vontade de representar e de criar continuou a acompanhar-me e, aos 15 anos, fui estudar para o Balleteatro. Entretanto fiz muitas outras coisas, tive vários trabalhos, tirei outros cursos, mas o amor pelo teatro e pela representação ocupou sempre uma posição muito forte e há uns anos voltei a ingressar na área artística. Este amor mantém-se porque vai sendo alimentado. Com constantes descobertas e experiências como actriz, com os espetáculos que vou assistindo, com as peças e textos com os quais me vou cruzando e pela aprendizagem que estou constantemente a experienciar. De facto, sinto que estou sempre a aprender, a crescer e não existe espaço para a monotonia. E pode ser muito divertido. Há que reconhecer que também é uma luta constante, mas vale a pena. Tem valido a pena.
Em 2020 voltei a estudar e estou neste momento a terminar o mestrado em direção artística e encenação na Esmae porque tenho cada vez mais vontade de criar os meus projetos. Por isso, a história continua…
EMISSOR: Para si, o que é ser atriz? Qual a melhor parte?
RP: Há algo de mágico e misterioso na profissão de actriz. Mas o que sempre me fascinou é o facto de poder viver várias “vidas”. Sempre acreditei que se vivesse apenas a minha vida de alguma forma poderia ser monótono e rotineiro. Talvez seja difícil de explicar.
Para mim, a parte mais divertida do trabalho de actriz é poder contar diferentes histórias e comunicar. Estudar pessoas, conhecer as suas histórias, ler diferentes textos e dar-lhes um corpo e uma voz é fascinante. Quando estamos num processo existe uma descoberta do outro em nós. Vamos à procura de tudo o que conseguimos, dentro e fora de nós, para construir outros “eus”. Através da imaginação, da prática, da improvisação, da leitura entre outras coisas, conseguimos encontrar estas personagens que de alguma forma fazem parte de nós, encontram-se em nós. No palco, tudo é possível e essa magia é inexplicável.
Embora neste momento já não me considere apenas actriz, porque trabalho em várias frentes. Escrita, música, ensino, entre outras. Em parte, porque não consigo estar parada e talvez também pela própria intermitência da profissão. Acabamos por ser artistas com muitas valências e competências noutras áreas.
EMISSOR: Como é que se sente perante o público? Qual é a sensação de todos estarem a olhar para si, à espera que lhes conte uma história?
RP: O público faz parte da magia e é quem torna tudo isto possível. Mas encará-lo é uma sensação avassaladora porque acarreta grande responsabilidade. Antes de entrar em palco sinto a adrenalina toda, mas assim que entro algo de extraordinário acontece. Cria-se uma relação muito natural.
EMISSOR: Sempre lidou bem com o público?
RP: Posso dizer que sim. Apesar de sentir alguma timidez quando falo em meu nome, em palco é diferente. Gosto de comunicar e de contar histórias e sentir que nos estão a ouvir é uma sensação muito boa. Posso partilhar um pequeno truque. Tenho estigmatismo e miopia e raramente uso lentes de contacto em palco porque me dá algum conforto não focar bem as caras. Quando reconhecemos as pessoas torna-se mais real.
EMISSOR: Houve algum personagem que mais a marcou?
RP: Sinceramente não penso especificamente numa personagem, porque participei em diferentes projetos que me marcaram. Tanto na área do cinema como no teatro, tive boas experiências. Mas uma que recordo ter sido desafiante foi interpretar uma cantora no espetáculo “Os Últimos Dias Da Humanidade”. Eu que estou habituada a cantar como Rita Pinheiro, pela primeira vez tive que interpretar uma cantora, mais madura, numa época de guerra, e cantava para um palco transformado em arena. Senti uma energia diferente e foi especial.
EMISSOR: Qual o momento mais emocionante que viveu neste caminho que escolheu para si?
RP: Volto a referir o espetáculo Os Últimos dias da Humanidade porque de facto foi uma experiência única. Um texto megalómano, dois encenadores incríveis, Nuno M. Cardoso e Nuno Carinhas, um elenco super-rico e uma maratona de 6h na última sessão no Teatro Nacional de São João (TNSJ) serão sempre inesquecíveis.
EMISSOR: Quais foram as pessoas (atores ou não) que usou (e continua a usar) como referência?
RP: Existem imensos artistas que me inspiram e de diferentes áreas. Penso que é natural e de acordo com o trabalho que vamos desenvolvendo, uns assumem maior destaque em determinado momento e depois vamo-nos cruzando com outros, e estamos sempre a descobrir novos artistas, mas vou citar algumas das minhas referências. Como actrizes portuguesas referencio a Custódia Galego, Beatriz Batarda, Monica Calle. Actrizes estrangeiras a Julia Roberts, Emma Stone, Angelina Jolie e Natalie Portman. Outros artistas importantes diria a Natália Correia, Simone de Beauvoir, Marina Abramovich, Lola Arias, Frida Kahlo, Chimamanda Ngozi, René Magritte, Salvador Dalí, Samuel Beckett, Tiago Rodrigues, Milo Rau, Slavoj Žižek, Pierre Bourdieu, coletivo de artistas Forced Entertainment e Rimini Protokoll entre muitos outros.
EMISSOR: Sempre considerou o mundo da interpretação como escolha única ou já se viu optar por outra profissão (noutra área)?
RP: Já passei por experiências noutras áreas. Inclusive há uns anos mudei de área e estudei Marketing. Trabalhei na área, fiz produção e como de alguma forma, me sentia assustada com o percurso artístico e o estado da cultura no nosso país, acabei por repensar as minhas escolhas e os meus sonhos. E na altura, ciente das dificuldades, julguei ser mais seguro optar por outro caminho. Mas de facto, não me sentia realizada e por esse motivo, em 2013 regressei à área artística.
EMISSOR: Qual a personagem que sentiu mais dificuldade em interpretar?
RP: A experiência que tive mais difícil, não só pelo desempenho em si, mas por várias condicionantes, foi fazer teatro de rua. Foi das minhas primeiras experiências profissionais, o encenador era peculiar, usávamos uns cabeções gigantes, fazíamos espetáculos com quase 40graus, tecnicamente e fisicamente era bastante exigente, fui picada por mosquitos e fiquei com um pé super-inchado o que tornou a execução ainda mais difícil, enfim, foi uma experiência que durou umas semanas e foi a mais difícil por conjunto de situações. Foi uma prova superada, mas que me marcou.
EMISSOR: Quais as peças em que já participou (novelas, filmes, teatros)?
RP: Felizmente já tive diversas experiências. Alguns dos espetáculos que mais me marcaram foi O Romance da donzela Theodora com o Aquilo Teatro; Xarxa 25 dos La Fura del Baus no festival Imaginarius e Os últimos dias da humanidade no TNSJ. No cinema a pequena participação na longa-metragem Porto de Gabe Klinger e na minha primeira curta-metragem 13H.
Também recordo alguns espetáculos para o público infantil como os Contos de Lengalengar e os Dedos Curiosos, este escrito e encenado por mim e por uma colega e outros de teatro musical, como a Surpreendente Fábrica de Chocolate, o Peter Pan e a Cinderela – o musical.
EMISSOR: É difícil ser atriz? Tendo em conta que muda constantemente de ambiente e de colegas com quem trabalha.
RP: Uma das vantagens é mesmo essa. Há uma parte de descoberta constante, o que torna tudo mais entusiasmante. Poder viver diferentes histórias, vestir diversas “peles”, conhecer pessoas novas é revigorante. Tenho sentido muita falta de aventuras novas.
EMISSOR: Qual o objetivo de vida que pretende alcançar?
RP: Continuar a ter a oportunidade de trabalhar como actriz e poder criar os meus projetos tanto em teatro como em cinema.
EMISSOR: Neste momento, em tempo de pandemia, quais as maiores incertezas que surgem?
RP: A grande incerteza é quando poderemos estar em palco, quando poderemos receber o público e quando poderemos trabalhar. Enfrentamos uma situação sem precedentes e naturalmente questiono quando poderei voltar a estar em palco. Não posso fazer previsões, mas tento manter-me focada no desenvolvimento de projetos para quando for possível, agarrar todas as oportunidades.
EMISSOR: De que forma tenta colmatar a situação atual que fechou os espaços ligados à arte?
RP: Felizmente um artista é multitask, e como dou aulas de expressão dramática tenho-me mantido ativa e a trabalhar. Houve muito trabalhado cancelado, alguns projetos adiados, outros talvez já nem venham a acontecer, mas continuo a trabalhar nos meus projetos e quando for possível, irei retomar alguns desses projetos.
EMISSOR: Qual a sua opinião face a este fecho?
RP: Toda esta gestão tem sido um pouco descabida. Pode-se viajar de avião, camioneta ou autocarro, mas ir a um teatro não é seguro? De facto, existem muitas incongruências, mas penso que é mais sensato falar da minha experiência. Relativamente aos teatros, a grande maioria conseguiu adotar medidas para continuar a desenvolver a sua atividade. Antes deste segundo encerramento, assisti a várias peças no Porto e senti-me muito segura. De modo que, espero sinceramente que em breve seja possível regressar ao teatro, museus, bibliotecas, espaços de concertos entre outros. Estou muito sedenta de poder usufruir ao vivo das experiências que só a cultura e a arte tem capacidade de proporcionar.
EMISSOR: O que espera do futuro?
RP: Gosto de pensar de forma positiva e viveria mais tranquila se a nossa sociedade considerasse a arte e a cultura como essencial e fundamental para a evolução da espécie. Desejo que a pandemia tenha contribuído para se valorizar a arte e que possibilite um outro olhar perante o teatro, cinema, música, poesia, dança etc. Sem eles, os dias de milhões de pessoas teriam sido muito menos felizes. Portanto, desejo que se deixe de julgar a arte e a cultura como algo dispensável, porque não é. Faz parte da educação e é urgente perceber que sem cultura e arte nunca poderemos evoluir.
Algo que espero sinceramente, é que o nosso governo lance apoios à redução da atividade económica com valores justos e adaptados à realidade portuguesa e que não tenham mil e umas exceções; que criem linhas de apoio e financiamento a estruturas e pessoas individuais da área da cultura e não só; que criem definitivamente o Estatuto dos Profissionais da Área da Cultura entre outras coisas fundamentais para a continuação da nossa atividade, porque penso que não deveríamos viver de forma tão precária.
Percebo pouco da área da saúde e não gosto de dar opiniões com pouco fundamento, mas tenho a sensação que o governo devia olhar seriamente para o panorama geral do país.
Tento ser otimista e espero sinceramente que se veja para além do vírus. Porque apesar de estarmos a viver uma situação dramática, de facto a vida continua e o mundo está praticamente há um ano absorvido e com uma só perspetiva. E há muita gente a passar muitas dificuldades, há imensas empresas a fechar, o número de vítimas de violência está a aumentar, as doenças mentais estão a disparar e o governo tem de ter decididamente mais soluções e apoios a todos os níveis. Não gostava de estar num lugar de poder e de decisões, mas é preciso tomar medidas conscientes, que salvaguardem naturalmente a saúde de todos, mas que nos permitam superar esta situação.
Espero ainda que o futuro traga mais humanidade para todos nós.