O Dia Internacional da Mulher celebra-se a 8 de março e, de acordo com a Organização das Nações Unidas (ONU), este dia é celebrado em prol das conquistas das mulheres provenientes dos mais diversos contextos étnicos, culturais, socioeconómicos e políticos. O dia 8 de março torna-se, assim, num dia a refletir sobre o progresso ao nível dos direitos humanos, sobre a coragem da mulher enfrentar os vários desafios que se opuseram no caminho para que, no dia de hoje, houvesse uma redefinição histórica, local e global.
Celebrado pela primeira vez a 28 de fevereiros de 1909, de acordo com a ONU “em honra da greve dos trabalhadores têxteis nova-iorquinos, em 1908”, o movimento das mulheres assumiu uma postura global e é celebrado, atualmente, a nível mundial.
Ser mulher em pleno século XXI
“O Dia Internacional das Mulheres tem que ser encarado como um dia de luta”, são estas palavras de Carla Cerqueira, doutorada em Ciências da Comunicação e especializada em Psicologia da Comunicação pela Universidade do Minho. A própria estuda as relações entre género e os média, as desigualdades sociais e a comunicação no quadro das ONG.
Até ao momento, Carla Cerqueira refere já ter sido percorrido “muito caminho no sentido da igualdade de género, mas estamos precisamente numa fase de retrocesso. As crises, como é o caso da pandemia que estamos a viver, não são neutras do ponto de vista de género e precisamos de ter isso em consideração. As situações de desigualdade social estão a agravar-se e afetam sobretudo os grupos mais vulneráveis, entre os quais estão as mulheres. Já há vários estudos que nos mostram que a precaridade no mercado de trabalho está a aumentar, é preciso ter em atenção as situações de violência, há uma sobrecarga de trabalho (esfera profissional e doméstica) que tem sido muito visível com o confinamento, só para dar alguns dos exemplos mais prementes que estamos a viver”, relata.
Relativamente às desigualdades de género, Carla Cerqueira menciona ser importante o “longo caminho que tem sido percorrido em termos de políticas públicas, de estudos neste campo, no seio do movimento de mulheres e os efeitos que advieram daí”, apesar disso, a própria menciona continuar “a existir uma discrepância muito grande entre leis e práticas. Por exemplo, de acordo com o Índice de Diversidade de Género 2020 Portugal está na cauda da Europa relativamente à percentagem de mulheres em lugares de gestão de topo. Isto mostra que as assimetrias no mercado de trabalho continuam a estar muito presentes, nomeadamente nos cargos de tomada de decisão”, explica.
Neste sentido, foi questionado a Carla Cerqueira se existem países com práticas que deveriam ser levadas como exemplo face à igualdade de género praticada em Portugal, ao que Carla Cerqueira explica como existindo “sempre países e políticas que são inspiradoras e que podemos tentar seguir, adaptando às necessidades e especificidades nacionais e locais”, no entanto, expõe que, neste caso, “talvez seja importante tentar uma campanha pública que permita um maior entendimento das medidas de ação positiva que vão permitir que quem não está nesses lugares tenha oportunidade de lá chegar. Este tipo de medidas, como é o caso da lei da paridade, não podem ser vistas como um fim em si mesmo, mas servem para corrigir imperfeições históricas e desconstruir a falácia da meritocracia”.
No que diz respeito à mulher e ao reconhecimento da própria no que diz respeito aos próprios direitos, Carla Cerqueira considera que, no dia de hoje, existe “um maior reconhecimento dos direitos de forma mais generalizada na sociedade, mas muitas vezes as assimetrias são internalizadas e, portanto, nem sequer são reconhecidas porque quem sofre situações de desigualdade ou mesmo discriminação. Um exemplo é a sobrecarga de tarefas domésticas a que muitas mulheres estão expostas, ainda mais nesta altura de confinamento. Há uma internalização de que estas são tarefas que são das mulheres e isso tem a ver com o processo de socialização de género que continua muitas vezes a dividir o mundo em duas esferas…”.
Atualmente, ainda existem várias divergências entre o sexo masculino e o sexo feminino, o que coloca a mulher, muitas das vezes, numa posição onde é levada “menos a sério”. Neste sentido, Carla Cerqueira explica que “os estudos mostram-nos que, em muitas profissões, as mulheres têm que mostrar que são muito mais competentes para serem levadas a sério, até porque historicamente elas não ocupavam esses cargos. Isto acontece na esfera política, na economia, na área militar e em diversas profissões historicamente associadas aos homens. As mulheres continuam a ser muito mais escrutinadas, até em termos públicos. Vejamos o exemplo das mulheres que exercem cargos políticos e que estão quotidianamente expostas. Ainda se pergunta às mulheres nestes cargos como é que conciliam a vida profissional com a vida familiar e pessoal, há uma atenção redobrada aos aspetos estéticos…”.
“O género faz-se, não é algo que se tem e se não educarmos nesse sentido vamos continuar a reproduzir estereótipos de género, preconceitos e muitas vezes a assistir a situações de discriminação que têm como base o género”, esclarece Carla Cerqueira, explicando que existe um “modelo assimétrico que ainda continua muito presente na sociedade acaba por ser deveras penalizador para as mulheres que não se encaixam nos padrões socialmente aceites”, acrescentando que “a educação tem um papel central nesse sentido, é preciso desconstruir os modelos binários de género, mostrar que o mundo tem muitas mais cores e que não existem duas caixinhas ‘homens e mulheres’, que muito do que somos, das escolhas que fazemos tem por base uma socialização de género, é socialmente construído e não é algo ‘natural’”.
Face aos movimentos feministas existentes, Carla Cerqueira refere ter sempre existido um estigma em relação ao movimento feminista, referindo existir “uma grande documentação nesse sentido, até sobre o contexto português e alguns episódios que levaram a uma incompreensão das ações do movimento feministas. Se por um lado já se caminhou bastante no sentido de desconstruir este estigma e explicar que o movimento feminista luta pela igualdade de direitos, por outro vivemos num período em que os discursos anti-feministas, muitas vezes associados à proliferação de movimentos e partidos de extrema direita, emergem”.
Acerca das questões de vergonha e consideração da mulher como “mal educada” por abordar temas como direito de aborto, violência doméstica ou igualdade salarial, Carla Cerqueira adianta ainda existir “uma vergonha de expor, de denunciar e isso relaciona-se muito com a tal internalização das normas sociais de género. É preciso criar uma consciencialização pública, mostrar que se tratam de violações dos direitos humanos e empoderar as meninas e mulheres no sentido da denúncia, da não aceitação das situações de violência, preconceito, discriminação…É, acima de tudo, necessário envolver todas as mulheres nesta mudança social”.
“Sou completamente favorável às medidas de ação positiva porque permitem corrigir imperfeições históricas”, são estas as palavras de Carla Cerqueira quando questionada sobre a imposição de quotas nos empregos, política ou em qualquer outra entidade, justificando que estas medidas “não podem ser vistas como um fim em si mesmo, mas como um meio para atingir a mudança”, acrescentando ainda que “é de referir que muitas vezes existem ataques a estas medidas baseados na falácia da meritocracia. O mérito nunca se colocava quando eram apenas homens a estar presentes em determinados cargos e também existem homens mais competentes do que outros. É preciso desconstruir isto e estas medidas permitem que as mulheres tenham acesso a estes cargos e mostrem que são tão competentes como outra pessoa qualquer. De outro modo nunca chegaríamos a esse ingresso nas profissões. Às vezes ouvimos que as mudanças não se fazem por decreto, mas há leis que são necessárias para impulsionar mudanças mais profundas”, explica.
De acordo com a situação em que Portugal se encontra, Carla Cerqueira considera que ainda “falta fazer tanta coisa. É uma ilusão dizer que já existe igualdade”, fundamentando que existem “situações em que as desigualdades são mais explícitas e há outras em que são mais subtis, mas todas são penalizadoras para as mulheres. E hoje em dia temos que dar especial atenção às desigualdades de género porque elas estão a acentuar-se com a pandemia. A sobrecarga de trabalho doméstico que as mulheres são alvo, trabalho este que não é reconhecido nem valorizado socialmente. Muitas mulheres procuram ser o máximo produtivas em termos do mercado de trabalho porque a precariedade laboral e o desemprego estão mais expostos e elas encontram-se numa situação de grande vulnerabilidade. As mulheres que são mães ou que têm outras pessoas dependentes a cargo têm que se desdobrar em múltiplas tarefas. Tudo isto tem consequências em termos da saúde física e mental. E temos que dar especial atenção a mulheres de grupos sociais mais vulneráveis, como por exemplo, mulheres idosas, mulheres migrantes, entre outras, que acabam por estar mais fragilizadas face à situação de crise que estamos a viver”, conclui.
“O desporto é para todos, o jornalismo para todos é”
Andreia Araújo é licenciada em Ciências da Comunicação, vertente de jornalismo e, atualmente, realiza uma pós-graduação com a Liga de Futebol portuguesa. Enquanto jornalista desportiva, Andreia Araújo está a dar os primeiros passos, cobrindo vários jogos de futebol presencialmente, lugar onde sente ser das poucas mulheres presentes.
Atualmente, o mundo futebolístico é dominado pelo género masculino, porém, existe uma paixão por parte de Andreia que sempre cresceu com ela e que lhe permitiu aprender muito nesse sentido. A própria, explica ter crescido em dois ambientes, o jornalístico e o desportivo, narrando ter tido “familiares ligados ao jornalismo durante anos, portanto o “bichinho” foi genético. O desporto, de alguma forma, também o foi e ainda é. Cresci num ambiente muito ligado ao desporto e, principalmente, ao futebol. Apesar disso, foi para o basquetebol que me virei, ainda nova. Pratiquei a modalidade durante alguns anos, mas devido a uma lesão grave, que ainda hoje me “dificulta” a vida, tive de abandonar o basquetebol”.
“O jornalismo desportivo acabou por ser o resultado de juntar as duas coisas que mais gostava de fazer na vida: o gosto pela escrita, pela recolha e partilha de informação e amor pelo desporto, seja em que modalidade for”, confessa a jornalista, acrescentando que “no final do ensino secundário, acabei por entrar na licenciatura em Ciências da Comunicação e tentei envolver-me em alguns projetos ligados ao jornalismo desportivo. Um dos que ficou foi o Bola na Rede, que é a minha casa no momento, e que carrego com bastante orgulho em cada artigo que escrevo ou em cada estádio que piso”.
Face à profissão que escolheu, Andreia Araújo conta que “Ser um membro desta comunidade é uma das coisas que mais me orgulho de tudo o que fiz na vida até agora, mas sei que ainda existe um longo caminho a percorrer em todas as vertentes. O facto de ser uma profissão ainda dominada pelo género masculino torna tudo um desafio ainda maior”.
“Nunca fui de lutas fáceis ao longo da vida e esta é mais uma”
Apesar de não existirem, durante muitos anos, mulheres no mundo desportivo, Andreia Araújo explica que, atualmente, “já existe um bom número de mulher nesta área”, no entanto, refere que, da mesma forma, “continua a existir uma prevalência do género masculino”.
De momento, a jornalista conta que “as mulheres estão lá, cada vez estão mais e espero que ainda mais apareçam. Falando mesmo naquilo que vivo e vejo, acaba também por depender do jogo em questão. Já houve vezes em que eu era a única mulher presente, tanto na bancada de imprensa como na sala da conferência de imprensa, como já existiram vezes onde não era a única, apesar de nunca ter visto, para já, um igual para igual entre número de homens e mulheres numa sala”, relata.
Quando questionada face ao estereotipo existente da sociedade relativo ao futebol “não combinar com as mulheres”, Andreia Araújo esclarece que “é mais uma questão cultural, infelizmente, e que, obviamente, acabou por se enraizar em cada indivíduo. O desporto, e principalmente o futebol, sempre foi visto como algo masculino. Um dos grandes exemplos deste ponto de vista, e que acaba por fundamentar esta visão, é o Brasil, conhecido como uma das grandes potências do futebol feminino, o país da Marta. As primeiras referências ao futebol feminino, nos anos 20, tratavam-no como se fosse um simples espetáculo e não um jogo, como se fazia com o masculino. Era considerado como um desporto violento e não era aconselhado às mulheres, então entoavam-no como uma brincadeira. Quando se começou a tentar fomentar realmente a prática do futebol entre mulheres, acabou por ser proibido até… 1979 e apenas teve direito a regulamentação a partir de 1983. Isto acaba por demonstrar muita coisa relativamente ao assunto”.
Posteriormente, refere que “se no país onde o futebol é o desporto rei, o futebol feminino foi tratado assim, o que se poderá dizer do restante envolvimento das mulheres no desporto? Ainda existe um preconceito generalizado que, acredito eu, com o tempo, será desconstruído. Existem sempre os olhares e os comentários para o lado, bons ou maus não sei, mas existem. Nas salas das conferências de imprensa são os sítios mais notórios disso. Quando coloco questões aos treinadores, eu sei que, naquele momento, há alguém a olhar para mim (alguns até nem o fazem discretamente) e, por vezes, acaba por ser desconfortável”, confessa.
Quanto às situações que sentiu como sendo mais desagradáveis, Andreia explica que procura sempre pensar que o que aconteceu “não foi por ser mulher”, adiantando que “se calhar, penso mal, mas gosto de pensar que não é por isso. Só tenho de pensar no meu trabalho, em fazê-lo da melhor forma, no meu objetivo enquanto estou ali e tentar não ligar a situações alheias. Sei que, enquanto estiver a fazer isso, estou, ao mesmo tempo, a tentar desconstruir uma ideia que, na minha opinião, não faz sentido. O lugar da mulher é onde ela quiser”, remata.
“Sei perfeitamente que ainda tenho um longo caminho para percorrer, para provar a mim mesma que consigo fazer isto, mas também provar que existe um espaço para qualquer um neste meio, seja mulher ou não. É preciso trabalho, dedicação e paixão por aquilo que se faz. O ditado “quem corre por gosto não cansa” nunca fez tanto sentido. Para mim, independentemente do ponto em que a minha vida estiver, vou sempre sentir que tenho um longo caminho pela frente porque existem inúmeros obstáculos para derrubar, sejam eles objetivos próprios ou generalizados”, explica a jornalista, evidenciando que “todos vamos subindo e vamos aprendendo com experiências e com os erros. Falo de mulheres e homens, não há distinção aqui, como não deveria haver em lado algum. Todos temos um potencial dentro de nós, apenas temos de fomentá-lo e trabalhá-lo, independentemente do nosso género. Podemos ser o que quisermos, mas isso envolve muito trabalho e amor pelo que se faz”.
“Eu sei que sou tão capaz como um homem porque todos começamos de algum lado, mesmo em situações diferentes”
À luz do jornalismo e do desporto, Andreia Araújo confessa que “adorava ver mais mulheres por essas redações, estádios e pavilhões fora. Gostava que fossem dadas essas oportunidades, mas sempre a quem tenha competência e trabalhe para tal. A palavra-chave será sempre “trabalho”, realça. Por outro lado, a jornalista diz saber que “existem bastantes mulheres com quem partilho esta paixão e que trabalham arduamente para ter o seu devido lugar. É mais um ponto onde não deveria existir uma distinção. Acho que tudo devia girar à volta do trabalho e da competência de cada um e não pelo seu género, mas existe ainda um longo estigma para tratar em relação a isso.”
“O desporto é para todos, o jornalismo para todos é. São dois meios que se mostram cada vez mais inclusivos em todos os aspetos e o jornalismo desportivo devia ser o culminar dos dois.”
“Ser bombeiro não é para mulheres”
Uma das profissões que também é essencialmente dominada por homens é ser bombeiro, no entanto, com o passar dos anos, foi-se iniciando a aceitação de mulheres para estes cargos, o que tem vindo a permitir que muitas se inscrevam com o intuito de ajudar o próximo.
Raquel Ribeiro tem 27 anos e é bombeira oficial de 2ª, contando que “desde criança que sempre existiu este ‘bichinho’ de ser bombeira”, uma vez que morava perto do quartel e o pai era já bombeiro voluntário, cativando o interesse de Raquel. “Desde as simples fardas aos toques das sirenes que, quando soavam, faziam-me arrepiar. Também porque sempre tive o dom de querer ajudar e colocar o próximo sempre como prioridade”, explica.
Para a bombeira, a oportunidade de se integrar na associação dos Bombeiros Voluntários de Lordelo surgiu “quando abriu a escolinha de infantes e cadetes. Ainda uma criança, mas assim que soube desta oportunidade, não pensei duas vezes e inscrevi-me assim que possível. Sempre com o apoio da minha família, que desde sempre foi o meu amparo. Assim, começou uma grande aventura, pelo qual passei pelos postos de Infante, Cadete, Estagiária, Bombeira de 3ª classe, Bombeira de 2ª classe e neste momento tenho a honra de ter o posto de Oficial bombeira de 2ª”. O posto foi proposto assim que Raquel Ribeiro terminou, no ano de 2018, a licenciatura na área da Enfermagem.
De acordo com Raquel Ribeiro, ser bombeira “é cada vez mais exigente, mas sempre foi uma grande paixão. É algo que gosto e quero continuar a fazer. Neste momento, além de mim, tenho o meu pai, o meu futuro noivo, o meu irmão e futura cunhada bombeiros, o que nos torna uma família de heróis”, refere.
Quando questionada sobre as atitudes machistas que poderiam evidenciar-se dentro ou fora da corporação dos bombeiros, Raquel Ribeiro conta que “essas atitudes já não existem na proporção, como existiam há alguns anos atrás. Contudo, mesmo existindo numa minoria, continua, por vezes, a existir algum machismo e, relativamente aos civis, ainda existem aqueles que acreditam que “ser bombeiro não é para mulheres”.
Apesar disso, refere que, “a partir do momento em que nos tornamos bombeiros, temos uma grande responsabilidade em cima de nós, e sendo assim, estando à frente num teatro de operações, temos de nos abstrair dessas atitudes e acreditar que estamos a tomar a melhor decisão para concluir com o máximo de sucesso os trabalhos que estamos a aplicar no momento. Só com esta autoconfiança é que irá haver uma boa liderança de equipa e fazer com que estes pensamentos sejam erradicados”, refere.
“Salvamos vidas, sejam elas humanas como de animais. Salvamos casas ou locais de trabalho. Por vezes chamam-nos de heróis, o que nos enche de orgulho, mas na verdade só seguimos o nosso lema que é “Vida por Vida”, relata a bombeira, no entanto, confessa que “existem situações que o desfecho não é o desejável. Ou se perdeu uma vida, ou mais que uma. Ou se perdeu um lar de uma família. Ou se perdeu uma fábrica que dava emprego a várias pessoas, entre outras… Nessas situações é que torna esta profissão difícil. Nesta altura, muitas das vezes temos de ser psicólogos de nós mesmos e fazer com que a vida siga em frente e nos preparar para uma nova missão”.
Uma bombeira em 1996 vs 2021
Filomena Manso tem 46 anos, é bombeira de primeira pertencente aos Bombeiros Voluntários de Lordelo há 25 anos, sendo considerada a bombeira mais velha na corporação.
Em conversa com Filomena Manso, tivemos conhecimento da abertura da escola de aspirantes bombeiros e, pela primeira vez, em muitos anos, foi permitido a oportunidade de existirem mulheres bombeiras, porque nunca tinha havido”. Foi assim que Filomena Manso entrou nos bombeiros, aos 21 anos, explicando que, se tivesse a oportunidade de entrar mais cedo, “provavelmente já tinha entrado”.
“O meu pai era bombeiro e os meus irmãos também. Na altura, havia a fanfarra, que sempre esteve ligada aos bombeiros”, contando que permaneceu na fanfarra entre os 8 e os 16 anos, explicando que “na altura deixavam andar e andei sempre”. Filomena Manso considera que, na altura, não podia haver para as mulheres, aquilo que havia para os homens, ou seja, o posto de cadete que, no fundo, era entrar para os bombeiros antes da idade estipulada para entrar e, assim que houvesse uma escola, estes eram integrados nela para se tornarem bombeiros.
Em Lordelo, freguesia de Paredes, Filomena Manso relembra ter sido permitida a entrada de mulheres nos bombeiros em 1996, ano em que se inscreveu. “O ‘bichinho’ andava por lá”, refere, recordando que “a sirene tocava e a gente ficava logo em alerta e tínhamos vontade de ir também”.
A bombeira explica que a mentalidade, na altura, era diferente e que, uma pessoa com 40 anos tinha uma mentalidade muito diferente de uma pessoa de 20, exemplificando que, quando foram permitidas mulheres, os homens referiam-se às mulheres com as palavras “vem para aqui, não vão puder carregar uma maca, não vão poder puxar uma mangueira”.
Uma das situações que aconteceram com Filomena Manso, em que a qual faz questão de lembrar foi quando inicialmente estava de serviço e, de acordo com o que conta, “tocou a sineta para uma urgência e era um acidente e na altura disseram-me ‘Tu não vais, tu não vais… vão os homens, eles vão’. E na altura deu-me aquela sensação de ‘eu fui posta de parte, fui posta de lado porque era mulher’. Foi mesmo assim ‘vai ele, porque ele é homem’”.
Além da questão de ser colocada de lado inicialmente, Filomena recorda também que as mulheres não faziam o mesmo serviço que os homens, sendo que, os homens chegaram a estar de serviço duas vezes por mês, enquanto integrantes nas escalas de piquete. Segundo a bombeira “os homens entraram nas escalas de serviço, faziam as duas vezes por noite, faziam os domingos ou sábados que tinham escalados e nós (mulheres) só fazíamos um domingo por mês, quanto eles faziam três ou quatro serviços por mês e nós só fazíamos um”, relata.
No que respeita à realização das noites no quartel, Filomena considera que as mulheres foram um pouco discriminadas nesse aspeto e apenas à cerca de 7/8 anos é que o comandante considerou que era importante existir a opção para as mulheres fazerem a noite. No entanto, para que tal fosse exequível, os bombeiros tinham que criar condições para que as mulheres pudessem realizar as mesmas funções. Para Filomena, começar a fazer as noites foi uma questão difícil, uma vez que, quando foi possível para as mulheres ficarem em serviço à noite, Filomena já tinha uma menina com 10 anos e, uma vez que o marido além de bombeiro é motorista internacional, na altura, Filomena disse não ter condições para ir à noite e deixar a filha sozinha em casa. Apesar disso, considera que, se tivesse tido essa oportunidade aos 21 anos, teria feito as noites.
No que diz respeito à família, Filomena Manso julga ser mais fácil quando a família apoia uma mulher bombeira, recordando que as colegas, depois de começarem a namorar, acabaram por desistir dos bombeiros.
A bombeira conta que “tem que haver um apoio, mesmo ao nível familiar, porque é tudo muito ‘bonito’, mas “uma mulher é para estar em casa” aos olhos do homem e ainda não ultrapassamos completamente essa fase. Acho que um dos maiores problemas é mesmo ao nível familiar porque “vais para a beira dos homens”. É tudo muito giro namorar com uma mulher bombeira, mas depois “e quer dizer vais deixar a família”. É teres um bebé e deixares o teu bebé com o teu marido e dizer “fica aí que eu vou para os bombeiros”, não é qualquer um que compreende. O homem pode ir para os bombeiros e deixar o filho em casa porque a mulher está lá a cuidar. É isto que acontece, mas quando é a contrário eles não acham muita piada”.
Na altura em que entrou para os bombeiros, Filomena Manso refere que “entraram meia dúzia de mulheres para um quartel que era só de homens e nós fomos para lá tipo… para algumas esposas nós estávamos lá tipo a “mostrar-nos”. Não fomos lá com intuito de ajudar, fomos para lá com o intuito de conquistar homens. A mentalidade…”, comenta entre risos e acrescenta que “o meu intuito quando fui para os bombeiros foi para cumprir uma missão maior que é ajudar o próximo. Foi por isso que me inscrevi e é por isso que ainda estou lá”.
A bombeira chegou mesmo a contar que, muitas das vezes, evitava usar a farda na rua para que as pessoas não pensassem que “se estava a exibir”, uma vez que a mentalidade, na altura, era essa. Além dessa situação, conta também que, por fazer parte do corpo de bombeiros voluntários, já chegou a ouvir comentários como “são voluntários, andam lá só para passar tempo”, enquanto que a realidade não é essa, referindo que “eu acho que, se fosse para passar o tempo, eu ia passear, ia antes para a praia, estava com a minha família. Porque a gente passa domingos e domingos, às vezes, em formações…”, completa.
Uma das coisas que viu que tinha maior dificuldade foi, essencialmente, quando foi mãe, realçando que, quando tinha de ir para os bombeiros, via-se com o problema “hoje vou estar de serviço, vais para a casa da avó, amanhã vou ter formação, vais para a casa da tia, hoje vais para casa de uma amiga”, mas muitas vezes tinha que pensar “para onde é que vais?”. Porque a gente, além de ser bombeira é mãe, é mulher, tem que fazer o serviço da casa, tem que ir trabalhar no dia a dia, …” explica.
Apesar de tudo, para a mãe de Filomena, Rosa Manso, é um orgulho ter uma filha bombeira e, para que Filomena pudesse estar ao serviço, a própria tomava conta da neta e, além disso, fazia o almoço/jantar, apoiando-a nesse sentido. Filomena Manso chega mesmo a dizer que “é a fã número 1, mesmo quando às vezes dizia que, se calhar, ia deixar, ela dizia “deixa-te estar”, comenta Filomena entre risos.
Neste momento, no corpo dos Bombeiros Voluntários de Lordelo existem cerca de 16 mulheres, sendo que, na totalidade, são à volta de 80 bombeiros. Em conclusão, Filomena refere nunca ter visto a sua vida facilitada por ser mulher e o conselho que deixa para a próxima bombeira é que a própria tenha “os pés bem assentes no chão” e quando tomar a decisão de fazer parte de uma corporação de bombeiros pensar que é “necessário ter disponibilidade e ter gosto pelo que faz. Ter espírito de solidariedade”.