No dia 30 de setembro de 1938, Neville Chamberlain, acabado de chegar de Berlim, discursava triunfante, garantindo a todos os britânicos que havia sido acordada a paz no seu tempo. A História provaria precisamente o contrário, já que, como muitos haviam alertado, Adolf Hitler, como a generalidade dos tiranos, não tinha a diplomacia em muito boa conta.
Ora se, analisando a atual crise na Ucrânia, é possível estabelecer um paralelismo entre o falhanço ocidental na estratégia de apaziguamento, verificado tanto em 1939 como em 2022, é, por outro lado, no mínimo intrigante que exista uma certa resistência a condenar, sem reservas, esta bárbara e imperialista agressão russa, por parte de partidos políticos que sempre foram vocais na luta contra o imperialismo americano. Ainda que o imperialismo americano seja, quando levado a cabo, igualmente reprovável, a referência ao mesmo no momento em que vivemos não passa de um claro branqueamento das ações de Putin, que colocam em causa a soberania e a liberdade do povo ucraniano, que, como qualquer nação, deve poder escolher o seu destino, incluindo qual organização internacional pretende integrar.
É por isso evidente o total alienamento da realidade demonstrado pelo Partido Comunista e, em certa medida, pelo Bloco de Esquerda, que insistem em adaptar os factos geopolíticos atuais, subvertendo-os e impugnando-os, tentando passar a narrativa de que o ataque russo é apenas uma consequência de uma malévola e dissimulada escalada armamentista levada a cabo pelos Estados Unidos da América e a NATO.
O que observamos é um fenómeno comum verificado em qualquer político fortemente determinado em provar a infalibilidade da sua ideologia: quando confrontado com a realidade, altera-a de modo a condizer com a sua ideologia. No entanto, tal apenas faria sentido num cenário de Guerra fria, quando estes partidos partilhavam convicções ideológicas com a Rússia (União das Repúblicas Socialistas Soviéticas), sendo por isso, apesar de igualmente hipócrita, expectável que manobras imperialistas levadas a cabo pelo exército vermelho fossem desculpadas e até apoiadas pela esquerda radical. O problema é que o exército russo já não é vermelho, a não ser as suas mãos, manchadas de sangue ucraniano, e a posição dos comunistas e bloquistas deixa de ser uma defesa da sua ideologia sem olhar a meios e passa a ser um antiamericanismo primário, que os coloca, ironicamente, ao lado de uma das mais reacionárias e autoritárias oligarquias do século XXI.
Dito isto, é provável que militantes ou simpatizantes destes partidos me acusem de mentira, difamação ou populismo barato, por dizer que os seus partidos apoiam o regime de Putin e as suas ações. A isso eu respondo que, ainda que seja verdade que estes partidos nunca tenham apoiado efetivamente o governo russo, tendo-o condenado, acertadamente, inúmeras vezes, a sua recusa em conceder à Ucrânia os recursos necessários para a defesa do seu território serve única e exclusivamente os interesses de Moscovo. Substituir os apoios à Ucrânia e as sanções à Rússia por um apelo à paz que, como é evidente, será inconsequente, enquanto Putin não tiver fatores efetivamente dissuasores à continuação da invasão e ocupação, é estar inequivocamente, quer se goste quer não, alinhado com as pretensões imperialistas de Moscovo. Parafraseando Winston Churchill, cujo importante papel que desempenhou na Segunda Guerra Mundial não deve ser ignorado, numa tradução livre: “Não se pode negociar com um tigre tendo a cabeça dentro da sua boca”.
“Mas afinal o que está em jogo?”, perguntará alguém que naturalmente não entende como é que uma guerra no leste europeu deve forçosamente ser motivo da nossa preocupação. Tal pergunta tem uma resposta simples, mas ao mesmo tempo cada vez mais necessária: O Estado de Direito Democrático e a Democracia Liberal, o sistema de organização política, económica e social que permitiu o maior progresso individual e coletivo da história da humanidade e cuja defesa deve ser permanente e levada até às últimas consequências. Branquear ou relativizar os perigos das ações de Putin, assim como escolher a inação numa tentativa de salvaguardar interesses económicos, coloca em perigo a liberdade dos povos Europeus que nos custou bastante a alcançar, mas que, e que ninguém se engane em relação a isto, custará ainda mais a manter.
João Santos
Membro IL Valongo