Entrevista“Olha que caiu a ponte e eu não sei dos nossos filhos”,...

“Olha que caiu a ponte e eu não sei dos nossos filhos”, foi a reação da esposa de Manuel após a tragédia da queda da ponte de Entre-os-Rios

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Após a tragédia da queda da ponte de Entre-os-Rios, na freguesia de Raiva, em Castelo de Paiva, os familiares das vítimas continuam com a memória fresca do acontecimento. Muitas pessoas acabaram por desenvolver problemas psicológicos após o acontecimento, no entanto, existe quem consegue, hoje, contar a sua história.

O EMISSOR entrevistou Manuel Guimarães, que prontamente nos contou como tudo aconteceu e, como hoje, lida com a situação e com a vida.

EMISSOR: Na tragédia Entre-os-Rios, quais foram os familiares que o Manuel perdeu?

Manuel Guimarães (MG): Foi um tio, uma tia, o meu filho e a namorada.

EMISSOR: Na altura, quando soube o que tinha acontecido, como é que reagiu?

MG: Foi um domingo, por acaso era um dia que estava a chover bastante e eu estava a descansar. Tinha-me deitado um bocado, como ao fim de semana trabalho bastante. Nisto a minha esposa, às 9h e tal da noite, disse “olha que caiu a ponte e eu não sei dos nossos filhos”.

O Fernando veio mais cedo, que é o meu mais velho. Veio mais cedo porque namorava do lado da capela, pertencente a Penafiel. Veio mais cedo porque se sentiu mal. Isto já é o destino.

Faltava a minha filha, o meu genro e o meu filho. A ponte caiu e não conseguia entrar em contacto com nenhum. “Queira Deus que eles não estejam envolvidos na tragédia”, disse a minha esposa e eu fiquei um bocado sarapantado e disse (para a mulher) “tem calma, não estejas a ferver em pouca água”.

Liguei para ele e ele não me atendia. Liguei para todos, não atendiam porque, entretanto, foi tudo cortado, as comunicações foram cortadas. Então fui a casa dele, que ele vivia aqui perto de nós, e eles (filho e a nora) não estavam. Tinham as janelas abertas e, com o tempo de chuva, eu disse “Alto! Aqui aconteceu alguma coisa”.

Mas como ela à segunda-feira de manhã ia para o Porto eu pensei, como estava o tempo mau, que às tantas foi levá-la ao Porto e até ficariam por lá. Mas não deixariam as janelas abertas.

Vim a casa e disse à esposa “olha que as janelas estavam abertas, alguma coisa se passará, eu vou lá baixo a Raiva num instante”, que era a terra da rapariga, a minha nora. Fui lá abaixo, chamei pelos pais, veio uma irmã, a Célia, e eu perguntei “a tua irmã não esteve cá?” e ela respondeu “ela de tarde foi com o Paulo ao Porto, de resto não os vi mais”.

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Eu disse “não sei se sabes, caiu a ponte, a ponte Entre-os-Rios. Queira Deus que eles não estejam na tragédia”. (A Célia) contactou logo para a patroa da minha nora, para ver se ela estava lá, não estava, e não tinha estado lá durante o fim de semana, contavam com ela só na segunda-feira. Nós contamos-lhe que a ponte tinha caído, a patroa dela disse que já tinha visto na comunicação social, e eu adiantei-me logo “cuidado que ela é capaz de estar na tragédia”. No entanto, fui a mais um lugar que pertence a Raiva, que é Oliveira do Arda, onde temos o centro de acolhimento, e disseram-me logo que caiu um autocarro com 59 vítimas e houve um carro que também caiu na tragédia. E eu contei a situação e disse “queria Deus que o meu filho…”, porque não consigo entrar em contacto com ele.

A minha filha, entretanto, ligou, mas foi por fixo, conseguiu ligar para nós, já não sossegou mais e contamos-lhe sobre o Paulo (filho). E ela disse que já tinha tentado ligar para ele e que não tinha conseguido.

Cheguei a casa já de manhã e disse para a minha esposa “deixa ver, porque ele trabalhava aqui numa empresa, deixa ver se às vezes ele chega para trabalhar”. De manhã chegou a carrinha que o vinha buscar, tocou e seguiu.

Liguei para o patrão e ele disse “ele está a trabalhar” e eu disse “não está nada a trabalhar” e ele “não pense nisso, tenha calma” e eu disse que estava convencido. O patrão dele disse que iria ligar para a obra onde ele andava e, ao fim de um tempo, ligou-me e disse que “afinal não estava lá”.

Foi aí que confirmamos. Mas a minha esposa sempre disse que ele estaria lá (na tragédia), a intuição dela é que ele estaria lá.

Naqueles primeiros dias nem cheguei a ir lá abaixo (à ponte), fechei-me em casa, não é fácil. Depois, passados uns dias, fui lá abaixo e fui ter com o comandante Ezequiel e disse “ó senhor comandante então como é que é… não se trabalha”, porque na altura houve um problema numa discoteca. Eles foram para a discoteca e beberam para lá uns canecos, a malta começou a discutir toda, a dizer que “eles em vez de estar preocupados com as vítimas, nada…” que era “um ganho para eles”.

A retirada do autocarro também foi algo que não gostei, porque deviam ter retirado logo e não, foi quase como “sacudir os cadáveres” e mais uma vez foi submerso, porque veio bastante chuva e o autocarro ficou submerso. Passado outro dia já o elevador do autocarro apareceu na lomba, até havia quem dissesse que estava lá o condutor do autocarro, não sei, o que eu sei, é que ele nunca mais apareceu.

O comandante Ezequiel na altura disse “Não se preocupe, eu vou tirar primeiro o seu filho” e eu disse “ó senhor comandante, se vai tirar primeiro o meu filho, é sinal que o senhor sabe onde é que ele está”. E ele disse “não sei, não sei, mas ele vai ser o primeiro carro a sair”, e foi.

Passado um mês saiu o primeiro carro, que foi com o meu filho. O primeiro carro a ser retirado foi um passat, e ele até vinha com uma perna de fora, mas não me deixaram ver, eu não cheguei a ver o meu filho, não me deixaram.

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EMISSOR: O Manuel considera que, com o passar dos anos, e tendo em conta que encontraram o corpo do se filho, para si foi de alguma forma mais fácil a concretização do luto?

MG: Sem dúvida que foi mais fácil. Eu tenho conversado com pessoas, tenho uma colega minha que é a Eliana que é irmã do condutor do autocarro, do Hélder, e ela, eu cheguei a encontrá-la a falar ao telemóvel com o próprio irmão. Isto há dois ou três anos. Eu disse “ó Eliana tu tens que ter calma, esquece, tu não andas em condições. É melhor ires a um psicólogo, porque tens que ter uma consulta a sério”. E ainda agora está a ser seguida, está de baixa, a fazer tratamento psicológico no Hospital de Penafiel.

EMISSOR: Considera que ultrapassou ou aprendeu a viver com esta situação?

MG: Ultrapassar não, porque nunca se esquece. Aprendi a “viver com”, a vida é assim, o ciclo da vida funciona assim, não devia de ser, mas quem somos nós para virar isto ao contrário… Deus é que sabe, Deus é quem dá o destino às pessoas, eu penso assim, que nós temos um limite de prazo para andar aqui e Deus é que sabe. Temos que nos convencer que é o ciclo da vida.

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EMISSOR: Tendo em conta que se fez o monumento, considera que partilha algum sentimento com os demais familiares que lá vão?

MG: Sem dúvida que aquilo faz parte de uma concentração. Juntamo-nos ali e partilhámos a dor uns com os outros.

EMISSOR: Isso ajudou-o de alguma forma?

MG: Acaba por ajudar porque houve vítimas. Na altura 36 vítimas que não apareceram. Mas é complicado. Temos que ajudar a suportar a dor uns dos outros. Uns de uma maneira outros de outra, mas tentar acalmar os ânimos.

EMISSOR: O Manuel está a ser acompanhado de alguma forma psicológica após a tragédia ter acontecido?

MG: Andei, mas neste momento estou apenas a tomar a medicação certinha e não tenho andado em consultas. O médico achou que a medicação está a fazer efeito e todos os dias tomo aquela medicação certa. Tomo à noite, para dormir, porque tive noites e noites em claro, não foi fácil e agora, ultimamente, até tenho dormido muito bem.

Da direita para a esquerda: filho e nora de Manuel, Manuel e a esposa – Direitos Reservados

EMISSOR: No passado dia 4 de março quando fizeram 20 anos desde a tragédia, foi visitar o local?

MG: Fui, eu até fui o primeiro a lançar a primeira flor, eu e a minha esposa. Lançamos uma cada um, por volta das 11h da manhã.

EMISSOR: O que é que sentiu nesse dia?

MG: É um dia que me relembra mais as coisas. Mas acaba por aliviar, porque fizemos um centro de acolhimento. O meu falecido filho era um defensor dos catraios mais pequeninos, então trazia-os para casa, preparava-lhe o leite, fazia doces amassados à mão, autêntico. Na altura eu trabalhava nas minas de Pejão, trabalhei lá 22 anos e a minha esposa dizia-lhe “ó Paulo, tu numa semana deste cabo de uma embalagem de leite, às vezes nem chega par uma semana, porque o teu pai anda a trabalhar debaixo do chão” e ele “ó mãe deixe lá, os meninos têm fome e querem comer”. Ele sentia-se bem a ajudar. Sentia-se bem dessa forma. Eu na altura pensei nisso, eu e os meus colegas, e lançamo-nos nesse projeto e está a trabalhar. Mas foi nesse âmbito.

A Casa de Acolhimento nasceu há 9 anos, é um lugar que acolhe crianças e jovens em situação de risco, bem como promove o desenvolvimento social das populações vulneráveis à pobreza e à exclusão social. Hoje, é um lugar que serve, também, para que os familiares das vítimas sintam que podem colaborar. Um lugar criado para ajudar o próximo.

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